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Bolsonaro dificulta contribuições sindicais em folha de pagamento

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No último dia 1º de março de 2019, véspera de Carnaval, momento em que as brasileiras e brasileiros iniciaram as festividades de um dos feriados mais esperados, publicou-se a Medida Provisória nº 873, que altera a Consolidação das Leis do Trabalho (Decreto-Lei nº 5.452/1943) e revoga a alínea “c” do art. 240 do Estatuto dos servidores civis da União, suas autarquias e fundações públicas federais (Lei Federal nº 8.112/1990). A MP nº 873 modifica os artigos 545, 578, 579, 579-A e 582 da CLT, que disciplinam a forma de cobrança das mensalidades e contribuições devidas aos sindicatos. No capítulo “dos direitos dos exercentes de atividades ou profissões e dos sindicalizados”, a CLT dispunha, em seu art. 545, na redação já alterada pela Reforma Trabalhista (Lei Federal nº 13.467/2017), que “os empregadores ficam obrigados a descontar da folha de pagamento dos seus empregados, desde que por eles devidamente autorizados, as contribuições devidas ao sindicato, quando por este notificados”. Citado dispositivo, portanto, garantia aos trabalhadores o direito de que os empregadores descontassem em suas folhas de pagamento as contribuições devidas às entidades sindicais por eles autorizadas. Com a nova redação do referido artigo 545, “as contribuições facultativas ou as mensalidades devidas ao sindicato, previstas no estatuto da entidade ou em norma coletiva, independentemente de sua nomenclatura, serão recolhidas, cobradas e pagas na forma do disposto nos art. 578 e art. 579.” Os artigos 578 e 579, por sua vez, estabelecem que as contribuições devidas aos sindicatos serão recolhidas apenas com a prévia, voluntária, individual, por escrito e expressa autorização do trabalhador. E mais, de acordo com os §§1º e 2º do art. 579, não será admitida a autorização tácita ou a substituição dos novos requisitos para a cobrança por requerimento de oposição, sendo considerada “nula a regra ou a cláusula normativa que fixar a compulsoriedade ou a obrigatoriedade de recolhimento a empregados ou empregadores”, ainda que “referendada por negociação coletiva, assembleia-geral ou outro meio previsto no estatuto da entidade”. O art. 579-A, incluído pela MP nº 873 de 2019, diz que a contribuição confederativa, a mensalidade sindical e as demais contribuições sindicais, incluídas aquelas instituídas pelo estatuto do sindicato ou por negociação coletiva, somente podem ser exigidas dos filiados ao sindicato. Por fim, o artigo 582, que antes previa a obrigatoriedade do empregador realizar o desconto em folha de pagamento da contribuição sindical, relativa ao mês de março de cada ano, dos empregados que a autorizaram prévia e expressamente, passou a determinar a obrigação dos sindicatos enviarem boletos bancários ou equivalente eletrônico para a residência do empregado ou sede da empresa para cobrança da contribuição sindical, mesmos nos casos em que o trabalhador autorizou o desconto prévia e expressamente. As modificações promovidas pela MP nº 873 de 2019 na CLT limitam sobremaneira as formas de financiamento sindical, violando direito das trabalhadoras e trabalhadores e das entidades sindicais de viabilizarem o pagamento das mensalidades e contribuições sindicais por meio de desconto em folha de pagamento. Outra má notícia, mais perversa do que os retrocessos iniciados com a reforma trabalhista, é que mesmo a mensalidade sindical, de caráter totalmente voluntário, que integra o mais singelo direito fundamental de livre associação sindical, passou a ter seu pagamento dificultado. Ao criar a obrigatoriedade de as entidades enviarem boletos bancários com a cobrança das mensalidades ou das contribuições sindicais, além de impor aos sindicatos os custos de emissão dos boletos, criando mais um promissor mercado para as instituições financeiras, dificulta os mecanismos de pagamento para os próprios trabalhadores. A captura do Estado pelo mercado financeiro chegou a esse ponto! Ainda, a MP objetiva claramente impedir a consolidação de entendimento jurisprudencial que se iniciara após a reforma trabalhista, no sentido de autorizar a substituição da vontade individual do trabalhador pela coletiva da categoria, no que diz respeito à necessidade de autorização prévia e expressa para o desconto da contribuição sindical. Essa tese foi defendida inicialmente na 2ª Jornada de Direito Material e Processual do Trabalho (Enunciado nº 38)[3], assim como pela Coordenadoria Nacional de Promoção da Liberdade Sindical (Conalis), do Ministério Público do Trabalho[4], e recentemente corroborada em decisões judiciais por todo país.[5] Na realidade, a medida provisória inviabiliza o recebimento de significativa parcela das contribuições sindicais, inclusive as assistenciais, ou outras instituídas ainda que por negociação coletiva, ao exigir autorização prévia, individual, expressa e por escrito do trabalhador, vedando a substituição de tais requisitos para cobrança por requerimento de oposição. Essa medida atropela as deliberações soberanas das assembleias dos trabalhadores e a legitimidade da representação sindical de, por meio da negociação coletiva, estabelecer contribuições e sua respectiva forma de cobrança que viabilizem o financiamento da atividade sindical. A prática sindical consolidada permitia a instituição de contribuições assistenciais nos acordos e convenções coletivas, desde que garantido o direito de oposição individual do trabalhador. Agora, ainda que as contribuições sejam instituídas nas normas coletivas, as entidades sindicais não poderão realizar as cobranças sem que cada trabalhador, previamente, individualmente, expressamente, por escrito e por boleto bancário, autorize o seu recolhimento. No que diz respeito aos servidores públicos, a MP nº 873 de 2019 revogou a alínea “c” do art. 240 da Lei Federal nº 8.112/1990, que assegurava ao servidor público federal o direito do desconto em folha, sem ônus para a entidade sindical ou para o servidor, do valor das mensalidades e contribuições definidas em assembleia geral da categoria. Em relação aos servidores públicos estaduais, distrital e municipais, a MP nº 873 não os alcança, na medida em que, pelo princípio do federalismo (art. 1º, caput, CRFB/88), os entes federados possuem competência privativa para dispor sobre normas relativas à remuneração e ao regime jurídico de seus servidores públicos (art. 61, §1º, II, a e c, CRFB/88) , inclusive sobre as regras de consignação em folha de pagamento. Dessa forma, considerando que as legislações específicas estaduais, distrital e municipais não foram ainda revogadas, o direito dos servidores e entidades sindicais nestes âmbitos continuam vigentes. O art. 240, alínea c, da Lei Federal nº 8.112/1990 previa a consignação da mensalidade sindical em folha de pagamento como direito subjetivo do servidor público federal, decorrente da livre associação sindical, direito fundamental protegido pelo art. 8º, caput, e art. 37, VI, da CRFB/88. E não é só, a Constituição também prevê, em seu art. 8º, IV, de forma expressa, o direito ao desconto em folha da contribuição sindical para custeio do sistema confederativo. Dentre os direitos e garantias fundamentais, o legislador constituinte elencou o exercício da atividade sindical. Trata-se, portanto, de direito que merece especial proteção na ordem jurídica nacional, sendo vedadas as tentativas de retrocesso, de retirada ou limitação. Em virtude disso, diante da constatação de que o próprio Estado pode atuar como violador de direitos e garantias fundamentais, adotando até mesmo práticas antissindicais, a ordem jurídica internacional também destaca o caráter essencial do exercício da liberdade sindical, por meio de diversos diplomas normativos. Relevantes garantias essenciais ao exercício desta liberdade estão expressamente consignadas em textos normativos construídos ao longo de décadas pela Organização Internacional do Trabalho (Convenções nºs. 11, 87, 98, 135, 141 e 151, por exemplo)[6]. A Convenção nº 98, da OIT, de 1949 (promulgada pelo Decreto nº 33.196/1953), em seu art. 2º, item 1, estabelece que as organizações sindicais deverão gozar de proteção adequada contra quaisquer atos de ingerência de umas e outras, quer diretamente quer por meio de seus agentes ou membros, em sua formação, funcionamento e administração. Ainda, a Convenção nº 151, da OIT, de 1978 (promulgada pelo Decreto nº 7.944/2013), aplicável às relações de trabalho com a Administração Pública, garante também a proteção adequada contra todos os atos de discriminação que acarretem violação da liberdade sindical em matéria de trabalho (art. 4º, nº 1). A Convenção nº 151 especifica que essa proteção deve aplicar-se, particularmente, em relação aos atos que tenham por fim “subordinar o emprego de um trabalhador da Administração Pública à condição de este não se filiar a uma organização de trabalhadores da Administração Pública ou deixar de fazer parte dessa organização” (art. 4º, nº 2, a). Nesse sentido, se a consignação da mensalidade sindical, do trabalhador público ou privado, corresponde a direito subjetivo, decorrente do direito fundamental à liberdade de associação sindical, não pode, até por força de expressa previsão constitucional, ser retirada, ou sequer limitada, por medida provisória, inclusive em franco comprometimento do jogo democrático. Com efeito, a MP viola também o princípio democrático ao tolher ou mesmo retirar das entidades sindicais o direito à ampla e efetiva participação social na própria discussão da proposta. Afinal, o princípio democrático não é limitado ao simples funcionamento do sistema político ou ao direito de votar e ser votado, também contemplando, na ótica da Constituição “Cidadã”, o efetivo direito dos movimentos sociais e organizações da sociedade civil de participarem ativamente na definição das políticas públicas e propostas relacionadas aos seus direitos e garantias. A Constituição diz que a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito, tendo como fundamentos a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político (art. 1º). Ainda, o texto constitucional diz que o poder emana do povo e, se assim o é, não pode uma medida oriunda do Chefe do Executivo, sem qualquer debate democrático, renegar direitos tão caros à representação coletiva da classe trabalhadora. No processo de construção da norma, a participação das entidades sindicais é essencial para efetivação do projeto democrático na extensão proposta pela Constituição. Ademais, a Constituição “Cidadã” de 1988 garante a não interferência estatal nas entidades sindicais (art. 8º, I), e, certamente, obrigar as entidades a utilizarem-se de determinada forma de cobrança de suas mensalidades e contribuições, e, da mesma forma, limitar a utilização de instrumento nacionalmente reconhecido como meio de pagamento, como é a consignação em folha, também configura direta violação à garantia da não intervenção. Curioso que a consignação em folha de pagamento é prática consolidada no país, sendo, predominantemente, utilizada por instituições financeiras para conceder empréstimos a servidores públicos, especialmente aposentados (art. 45, §1º, da Lei Federal nº 8.112/1990 regulamentado pelo Decreto Federal nº 3.297/1999) e, recentemente, a empregados privados, que podem inclusive utilizar o FGTS como garantia (art. 1º, §5º, da Lei Federal nº 10.280/2003, com redação dada pela Lei Federal nº 13.313/2016). Ora, se até mesmo os bancos podem utilizar do mecanismo para terem seus créditos adimplidos pelos trabalhadores, não se mostra razoável, mas, na verdade, violador do princípio constitucional da isonomia (art. 5º, caput, CRFB/88), exigir que entidades sindicais sejam obrigadas a adquirirem serviços bancários para cobrança de valores que podem ser adimplidos por outros meios. Em tempos em que se propõe a reforma da Previdência Social, de caráter público e solidário, para o mercado predatório e nem mesmo confiável da capitalização[7], era de se esperar que o mercado financeiro abocanhasse mais esse nicho de atividade. Por tudo isso, a MP nº 873 de 2019 é evidentemente inconstitucional, por violação ao direito fundamental dos trabalhadores públicos e privados de livre associação sindical (art. 8º e art. 37, VI, da CRFB/88) e de impiedosa interferência na gestão sindical (art. 8º, I, da CRFB/88). Por fim, merece destacar que a Medida Provisória afronta também o art. 62 da CRFB/88, já que inexistentes a “relevância e urgência” necessárias para expedição deste tipo de norma. A única urgência perceptível na norma é a de retroceder com direitos a duras penas conquistados pelos trabalhadores e sindicatos ao longo da história. Em época em que a folia deveria apenas alegrar os corações dos milhões de trabalhadoras e trabalhadores brasileiros, a tragédia assombra o futuro da organização coletiva dos trabalhadores, a poucos passos do enfrentamento de uma das mais importantes conquistas sociais e de consolidação de um projeto de Estado Social e solidário: a Previdência pública. “É preciso estar atento e forte”, Caetano Veloso. --------------- Artigo elaborado pelo Núcleo Estado Democrático de Direito, de atuação conjunta dos escritórios Barbosa e Dias Advogados Associados e Sarah Campos Sociedade de Advogados, que oferece serviços de assessoria, consultoria e representação especializada, em âmbito administrativo e contencioso, judicial e extrajudicial. Pautando-se na ação estratégica perante o Judiciário, o Ministério Público, o Legislativo, o Executivo, bem como instituições e cortes internacionais, objetiva-se proporcionar aos clientes posição de vanguarda perante os desafios sociais e institucionais que se delineiam. Reproduzido do site Congressoemfoco.